Feito em grande parte com imagens lindamente restauradas a
partir de filmes que ficaram apodrecendo num porão durante 50 anos, o
documentário "Summer of Soul" apresenta uma versão resumida e
arrebatadora do Harlem Cultural Festival. O diretor Ahmir "Questlove"
Thompson fez um enorme trabalho de pesquisa e entrevistas com artistas e
pessoas que assistiram aos shows ao vivo naquele verão nova-iorquino do fim da
década de 1960.
Mas o ouro são as 40 horas de gravações em fitas de áudio e
vídeo feitas pelo cinegrafista e produtor Hal Tulchin, que, na tentativa de
atrair algum interesse da indústria cultural americana pelo que tinha captado
naqueles seis domingos, apelidou o festival de "black Woodstock". Em
vão. O material ficou esquecido até a sua morte, em 2017, quando foi cair nas
mãos de Questlove, que viu, entendeu a importância do que viu e decidiu
produzir o documentário.
Ele caprichou na edição, que vai aos poucos construindo um
retrato da tensão racial na sociedade americana naquele momento, em que jovens
negros eram mandados para a Guerra do Vietnã em números muito maiores do que os
brancos e muitos dos que ficavam eram perseguidos e mortos pela polícia.
A desconfiança da população negra com o establishment era
tão grande que os organizadores do festival chamaram membros do partido
político Panteras Negras para fazer a segurança. No Harlem, a pobreza e a
epidemia de drogas eram os problemas que mais preocupavam seus moradores.
O documentário "Summer of Soul" tem um título bem
maior, na verdade -é seguido por "(...Ou, Quando a Revolução Não Pode Ser
Televisionada)". A frase entre parênteses remete ao nome e ao refrão do
poema musicado "The Revolution Will Not Be Televised", escrito por
Gil Scott-Heron, músico americano considerado uma fonte de inspiração do rap e
que se tornou um hino informal dos ativistas dos Estados Unidos no final dos
anos 1960.
Esse filme marca a estreia na direção do músico e produtor
americano líder da banda The Roots, que toca no programa "Late Night with
Jimmy Fallon", na NBC, e que dirigiu a orquestra da última cerimônia do
Oscar.
Foi um dos mais aclamados pela crítica do mundo todo no ano
passado, quando foi lançado, e está sendo considerado um forte candidato a uma
indicação ao Oscar de melhor filme do ano. Não de melhor documentário --mas
filme, o prêmio mais importante da cerimônia, que neste ano acontece no dia 27
de março.
O fato de chegar ao Brasil só agora, discretamente e no
canal de streaming do Telecine, que desde seu lançamento apresenta inúmeros
problemas técnicos, é quase tão revelador quanto outro dado, ainda mais
inacreditável. O festival de música negra que ele documenta aconteceu durante
seis semanas no mesmo verão em que o homem chegou à Lua e que aconteceu o
festival de Woodstock, mas foi completamente esquecido.
A chegada do homem à Lua foi vista ao vivo na TV por 1
bilhão de pessoas ao redor do mundo. Durou menos de três horas. O festival de
Woodstock aconteceu a duas horas de distância de Nova York, durou um final de
semana chuvoso e ficou conhecido com um dos maiores eventos da música popular
da história.
Enquanto isso, no Harlem, durante seis domingos no verão de
1969, aconteceram shows gratuitos de nomes como Stevie Wonder, Nina Simone, Sly
and the Family Stone, Gladys Knight, Mahalia Jackson e B.B. King, entre muitos
outros.
A única vez que a televisão local foi até lá foi justamente
no dia seguinte à chegada de Neil Armstrong e Buzz Aldrin à Lua, em 20 de
julho, para gravar a reação dos negros a esse marco histórico da conquista do
espaço.
O que o repórter branco queria, e conseguiu, era um
contraponto à exaltação do público em geral em relação ao grande feito da Nasa
e do governo americano. As pessoas que lotavam o parque Mount Morris (hoje
Marcus Garvey) na tarde do dia 21 de julho de 1969 não poderiam se importar
menos com "o grande salto para a humanidade" dado pelo astronauta.
Não porque não enxergaram a grandeza do "pequeno passo para o homem"
de Neil Armstrong, mas porque no verão de 1969 as prioridades dos negros eram
outras.
E porque eles estavam testemunhando um outro acontecimento
histórico, um feito inacreditável do cantor e promotor Tony Lawrence,
praticamente um desconhecido com um enorme poder de persuasão, que convenceu o
departamento de parques de Nova York --com apoio do prefeito republicano John
Lindsey e patrocínio da marca de café Maxwell House-- a contratar alguns dos
maiores nomes da música negra da época para se apresentar em uma série de
shows.
O ano anterior tinha sido violento no bairro negro e latino
de Nova York por causa do assassinato do pastor e ativista Martin Luther King,
em Memphis, no estado americano do Tennessee. Ele foi o quarto homem
assassinado naquela década que tinha uma posição política favorável à luta
pelos direitos civis.
Primeiro tinha sido o presidente John Kennedy, em 1963.
Depois, o ativista Malcolm X, em 1965. E, meses antes da morte de Martin Luther
King, o irmão do presidente Kennedy, Bobby Kennedy, que estava concorrendo à
presidência.
Em 1969, o clima do verão no bairro era de revolução, mas
outro tipo de revolução. Que, para nossa sorte, agora pode ser televisionada.
Trailer:
https://www.youtube.com/watch?v=1-siC9cugqA
SUMMER OF SOUL (...OU QUANDO A REVOLUÇÃO NÃO PÔDE SER
TELEVISIONADA)
Quando: estreia nos cinemas em 27 de janeiro (São Paulo, Rio
de Janeiro, Brasília, Salvador e Belo Horizonte)
Onde: disponível no Telecine Play
Classificação: 12 anos
Elenco: Al Sharpton, Dorinda Drake, Stevie Wonder
Produção: EUA, 2021
Direção: Ahmir "Questlove" Thompson
Avaliação: ótimo
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